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sexta-feira, junho 30, 2006

DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA E REGIME DEMOCRÁTICO 

I - CONCEITO DE DEMOCRACIA E BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICO-FILOSÓFICA

Recorrendo à subdivisão clássica de Aristóteles, dir-se-á que é uma das três formas de Estado, para além da aristocracia e da monarquia ou monocracia. São assim divididas tendo como critério a titularidade do poder – isto é de quem detém o poder – residir num pequeno grupo de homens da comunidade política, num só, ou na generalidade de todos os seus cidadãos.
Desde a antiguidade clássica que este conceito tem vindo a infundir toda a concretização histórica e real da organização das formas de estado e de governo, bem como tem norteado as suas várias concepções filosóficas.
Por isso, desde a polis grega, berço original da democracia, esta tem assumido várias formas. E, curiosamente, renasceu uma vez mais nas cidades, a democracia. Sob a forma chamada de municipalista-corporativa da Idade Média. O governo era organizado à volta das corporações de certos ofícios, estando pois, muito ligada ao surgimento da burguesia. Estas cidades foram os tubos de ensaio do estado moderno, tendo sido, curiosamente, nas cidade-repúblicas de Itália, que, nas suas contingências, surgiu o 1.º modelo do estado moderno.
Coincidentemente, a tal não é alheio o pensamento filosófico primordial de S. Agostinho, a que se seguiu, depois, toda a Escolástica e o seu intérprete maior, Santo Tomás de Aquino. O modelo da “civitas dei” agostiniana incorporava a noção da comunidade a que os indivíduos aderiam na busca da Justiça, único lugar onde a tranquilidade e paz (em sentido espiritual) seriam possíveis. Já na perspectiva de S. Tomás, é manifesta a ideia de um pacto social, através do qual a comunidade se entregava ao estado, o qual perseguiria o bem comum, provendo às necessidades do povo, pois só assim seria possível a realização da Virtude cristã.
Ora, este carácter mais acentuadamente contratualista, reconhecemo-lo no modelo da democracia orgânico-estamental. No final do período feudal, há uma assumpção expressa do papel do monarca, motu próprio. Todavia, o seu múnus era controlado pelas forças fácticas da sociedade, organizadas em assembleias, denominadas de parlamentos, dietas, estados ou as nossas conhecidas “cortes”. Aqui o monarca não tinha ainda conquistado o carácter divino, que virá, mais tarde, a alcançar.
Contributo decisivo, na concentração de poderes na figura real, foi o legado de Maquiavel, onde surge pela primeira vez a noção de Estado, “stato”, com um significado moderno. Assim como o contributo de Bodin ao afirmar o conceito de “soberania”, entregando-a nas mãos, tutelares, do rei.
Com o desenvolvimento da burguesia como classe ascendente, a difusão das ideias do Iluminismo e a crescente valorização do indivíduo ao longo dos sécs. XVII e XVIII, assim se foi desenvolvendo o pensamento de base contratualista, com por exemplo, Francisco Suarez (aqui referido como representante de um aggiornamento no pensamento católico e lente maior da Universidade de Coimbra) ou Thomas Hobbes. Neles, o veículo de legitimação última do poder residia nos próprios elementos de uma comunidade.
Toda esta evolução vem a desaguar no manifesto acolhimento das ideias de liberdade individual, designadamente, da livre participação política dos cidadãos, e, por conseguinte, da democracia como forma de governo. Por isso, e passado o período das grandes revoluções atlânticas, a inglesa, a americana e francesa, vingam, no séc. XIX, as ideias do parlamentarismo e liberalismo – tributárias de John Lock – e de democratismo – ligada a Jean Jacques Rousseau. Assim surgindo o demo-liberalismo que conduziu ao Estado de Direito moderno de raiz liberal, por todos nós sobejamente conhecido.
Todavia, e durante o séc. XIX, com o Positivismo, as ideias Marxistas, juntamente com as profundas transformações sócio-económicas provocadas pela Industrialização, há um amolecimento da consciência dos valores da Liberdade e uma maior consciencialização dos valores sociais. Fenómeno tão sensível tendo originado por parte da Igreja esse documento maior do Papa Leão XIII que é a Rerum Novarum. Tais convulsões darão origem às democracias corporativas de Estado e às democracias populares ou de massas cujas concretizações mais paradigmáticas, respectivamente, são o Estado Fascista Italiano, Nacional-Socialista Alemão e o Socialismo Soviético. Regimes estes, que apesar da denominação democrático, mais não foram do que regimes totalitaristas, com um carácter profundamente suprapersonalista, ou seja, tomando o cidadão como um meio e não como um fim, ao serviço dos objectivos do Estados.

II - QUE FORMA DE GOVERNO ACOLHE A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA?

A democracia é, enquanto proposta de livre participação de cada cidadão na vida colectiva, designadamente nas opções políticas, e como garante aos governados da possibilidade de escolher, controlar, substituir os próprios governantes, o sistema que melhor acolhe a Mundividência Católica e Cristã. Porquê?
Tal como nos refere S. Tomás, na sua inspiração aristotélica, o homem tem uma vocação natural para viver em sociedade. É um ser relacional e social. A essa vocação Deus oferece a cada homem uma proposta, um caminho de salvação. Tal desafio, que é real, terreno, deverá ser concretizado pelo crente, em total Liberdade e com total responsabilidade.
O homem está pois na centralidade da acção divina, é o vértice da criação, (Adam em hebraico = homem). Não pode, por isso, realizar-se num mundo hostil, que o veja como algo meramente instrumental e acessório. A dignidade da pessoa humana é, pois, a definitiva pedra angular, a condição de legitimidade última, de qualquer sistema político, pois “Não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há homem ou mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (Gl 3,18; Rm 10, 12; Cor. 12, 13; Cl 3,11).
A democracia, enquanto potenciadora deste espírito de liberdade, enquanto proporcionadora de todo um espaço de exercício da responsabilidade do homem, cumpre o seu papel aos olhos da Igreja. Toda a comunidade política deverá, pois, permitir que cada ser humano possa colaborar, activa e construtivamente, para o Bem Comum da sociedade em geral.
Neste sentido e muito para além da comunidade política, estará sempre a sociedade civil enquanto areópago individual de cada cidadão. É aí que, cada ser humano, desenvolve as suas realizações concretas, onde poderá livremente escolher o percurso da sua realização pessoal, seja na cultura, nas ciências, nas humanidades, na economia, enfim, onde a sua vocação, eminentemente, pessoal se cumpra.

III - O CATÓLICO: UM CIDADÃO COMPROMETIDO

O espaço de voluntarismo que é concedido na sociedade a cada crente deverá ser concretizado, forjando o seu próprio percurso. No cumprimento desse átomo de Liberdade que Deus concedeu, o cidadão católico, não pode alhear-se da sua aliança com o Criador. É seu dever, e porque não direito, actuar de acordo com os valores que inspiram e infundem a sua vida espiritual. Ser actor efectivo na cidade dos homens. Não basta ser um mero e bem disciplinado espectador. Atento que seja. É preciso ser algo mais, para que não reverberem as palavras do poeta : “Um pouco mais de sol - e fora brasa; Um pouco mais de azul – e fora além; Para atingir faltou-me um golpe de asa…”( in Quase, Mário de Sá Carneiro) e, dizemos nós, que assim não se cumpre o destino de ninguém.
É evidente que o fim que cada cristão pretende alcançar não é deste mundo, é algo com um carácter, eminentemente, religioso, escatológico. Mas, ainda assim, desta missão religiosa flui um encargo, uma luz, uma energia que impele à acção concreta no mundo profano, demonstrando coerência de comportamentos.
O crente é pois ad vocato, chamado a... ser advogado da causa dos homens e da causa de Deus.

IV - O INDIVÍDUO NA DEMOCRACIA DE HOJE E NO CUMPRIMENTO DOS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

A democracia, enquanto sistema acolhedor da verdade cristã, deve ser apoiado e suportado pelos crentes. Num duplo sentido:
Primeiro: no seu melhoramento e, por isso, é determinante a participação cívica.
Segundo: na identificação e denúncia dos seus riscos (da democracia).

1 - Participação Cívica

É através da participação cívica que os cidadãos poderão cumprir a sua missão. Enquanto sistema aberto e carente da intervenção cívica, a democracia, vive enquanto houver indivíduos interessados e empenhados no Bem Comum. Nomeadamente, a democracia representativa, como sistema cuja organização da participação política é efectuada através dos partidos, é dependente desse interesse cívico, devendo, os partidos, em particular, fornecer aos cidadãos a possibilidade de concorrerem para a formação da opções políticas.
Participar é, por isso, um pilar não só de qualquer ordenamento democrático, mas da própria Doutrina Social da Igreja.

1.1 - Condições a priori para a Participação:

1.1.2 – A Família

O seu papel é insubstituível enquanto célula vital da sociedade. A família como primeira escola das virtudes sociais, deverá ser acarinhada e protegida como instituição fundamental ao desenvolvimento das futuras gerações.
É na família que os valores da Verdade, da Justiça, da Liberdade e da Caridade, são primeiramente transmitidos e vividos da forma mais natural. Nela, os mais novos aprendem a lidar com as emoções, com os sentimentos, positivos e negativos, e só aí poderão forjar-se personalidades fortes e sadias para enfrentarem com coragem os desafios do mundo dos homens.
A grande noção de partilha, de dádiva, de altruísmo, de diálogo, de disponibilidade desinteressada e genuína, de serviço, é partilhada, de forma quotidiana nas famílias. Nelas o ser humano é, por princípio, um fim em si mesmo e nunca um meio. Por isso, uma sociedade à medida da família será a melhor forma de garantia contra desvarios individualistas – egocêntricos ou, por outro lado, colectivistas, que colocam o homem no plano último das prioridades do Estado.
Numa palavra, as famílias assumem-se como recurso determinante e fundamental para a qualidade da sociabilidade e da convivência social.
Daí que os pais, deverão estar conscientes do seu desígnio maior, e por isso, deverão reclamar o direito de também poderem escolher os instrumentos formativos correspondentes às suas convicções.

Por isso e par com a função modeladora e formadora da Família, a outra condição para uma sociedade civil robusta e participativa é

1.1.3 – A Escola

A escola, é o veículo, por excelência, da formação intelectual das gerações mais novas. Nela deverão ser transmitidos todos os valores que a formação familiar acolhe. Deverá cativar os alunos à reflexão, à compreensão do mundo à sua volta. Ao entendimento do meio onde se inserem. Só através de uma formação cultural sólida, poderão os futuros cidadãos participar, na sociedade civil e na comunidade política, de uma forma construtiva, e consciente do seu papel. A escola formará as consciências do futuro.

2 - Os riscos da democracia (denúncia)

Só com uma formação sólida, os cidadãos poderão estar alerta para os perigos do regime que tão bem os acolhe. E contribuir para a sua resolução.

2.1 – Populismo e demagogia

Já identificada por Aristóteles como a subversão da democracia, a demagogia e o populismo, mais não são do que fruto da complacência da sociedade civil e da comunidade política.
Tal facto, é sobretudo motivado, actualmente por uma democracia de partidos já viciada. O mecanismo eleitoral, teoricamente de correcção, não consegue, já responder ao seu intuito inicial. Pelo contrário a lógica politico-partidária actual, está desvirtuada e não persegue o bem comum: propõe-se ganhar eleições. E para alcançar o seu desiderato, socorre-se de todos os meios para iludir os eleitores. Criando uma oligarquia de partidos.
Esquece-se a verdade e a justiça, promove-se o interesse e a mentira, como é exemplo o recurso a expedientes ditos eleitorais, por parte dos partidos políticos. Quem não se lembra da célebre frase de George Bush pai, “read my leaps”.

2.2 - Relativismo Moral e Ético: a Interculturalidade

Como referia M. Scheler, o sincretismo cultural, político e religioso dos dias de hoje, lembra-nos o séc. III depois de Cristo.
De facto, e quando se refere Interculturalidade, quer se dizer a diversidade cultural na própria matriz, seja ela, Ocidental, Islâmica ou Hindu, isto é a interpenetração de várias correntes culturais dentro dum mesmo quadro cultural, de que é exemplo acabado o fenómeno das sub culturas urbanas. Tal facto, não é somente um ar do tempo, é mais do que isso, é fruto de toda uma miríade de referências. Que imprime um carácter de grande subjectividade a todo o quadro cultural de um indivíduo. Daí a consequente complacência no campo dos valores. Dir-se-ia, como os Sofistas na Antiga Grécia, que cada homem concreto, na contingência da sua existência terrena, é a medida de todas as coisas. A verdade tornou-se relativa como nos já havia revelado Bachelard.

2.3 – O fim das grandes ideologias e a Globalização:

Acresce também, a queda das ideologias. O fim da cortina de ferro, deixou o Mundo Ocidental, sem a referência na sua alteridade. Não existe, em espelho, um outro sistema de valores que permita o reconhecimento do nosso por antítese.
E, com o fenómeno do Terrorismo internacional, já se vão valorizando os valores da segurança e bem-estar, em vez do enfoque estar na Liberdade e personalidade.
Por isso, não existe um quadro de valores, uma verdade última, que oriente e guie a actividade política. Sem este sistema de valores, a actividade política é facilmente instrumentalizada para os fins do poder instalado. Por não haver fidelidade a uma ideologia, justificar qualquer acção governativa é muito mais simples. E, ao invés, o escrutínio público muito mais difícil.
Há pois, o perigo real, de um totalitarismo, ainda que dissimulado.
A isto correspondem também os novos desafios do Estado dentro da comunidade internacional já globalizada. Sem dúvida, os marcadores económicos determinam completamente a acção do estado. Pode-se mesmo falar no conceito de estado-empresa. Fruto da despolitização e do gradual crescimento dos requisitos técnicos e de especialização dos cargos políticos. Aumento da produtividade, da procura, eficácia, rendibilidade, redução da despesa, crescimento do PIB, entraram, definitivamente, no politiquês. Muito do sucesso de um Executivo depende de conseguir vingar as suas políticas económicas. E, de facto, com os mercados emergentes asiáticos, com o surgimento dos BRIC, Brasil, Rússia, Índia e China, a competição nos mercados é tal que as preocupações sociais soçobram perante a força da lei do mais forte.

2.4- Corrupção política

Desde logo, trai os mais básicos princípios, o do Bem Comum e as normas de justiça social. É um fenómeno terrível devido ao seu impacto, pois impede o correcto funcionamento do aparelho estadual. E, sobretudo, leva ao afastamento dos cidadãos da coisa pública. Imprimindo, assim, sentimentos de desconfiança entre eleitores e eleitos. Toda a lógica representativa é subvertida, levando, em última instância, ao enfraquecimento das instituições democráticas. Na verdade, a satisfação de interesses clientelares leva a que se favoreçam, ilegitimamente, objectivos de grupos restritos impedindo a justa prossecução do Bem Comum.



2.5 – A sociedade mediática

Relacionado com todas as situações acima referidas, temos que na actual sociedade, altamente mediatizada e massificada, a relação entre governantes e governados, passa pela mediação dos meios de comunicação social. Desde logo, aqui se reconhece o carácter imprescindível do mass media, como condição de participação dos cidadãos na vida colectiva da comunidade.
Por isso, um dos fenómenos ainda pouco falados é o da Info-exclusão. É uma nova forma pobreza e de iliteracia, sobretudo numa sociedade onde a informação é poder. De facto, a falta de acesso à informação, veda, em absoluto, o estatuto de cidadania. Não é possível a promoção da participação sem o acesso vital à informação.
Já no que toca aos meios de comunicação social, em particular, deverá preocupar a sua concertação e a concentração nas mãos de uns quantos. Deverá haver uma multiplicidade suficiente que garanta o pluralismo no campo da informação e comunicação. Bem como possa estabelecer graus de qualidade mínima.


V - SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA

Pugnar por uma sociedade civil mais forte, mais consciente, mais atenta, é permitir o enriquecimento da própria democracia. Tal facto levará a que a convivência social seja mais livre e justa. Onde os cidadãos se movimentem e expressem a suas orientações e interesses legítimos.
Uma sociedade civil participativa, que seja acolhida pelo Estado, no justo respeito pelo princípio da subsidiariedade, permitirá uma dialéctica entre os seus diferentes actores. De facto, só um tecido social crítico, forte e profícuo poderá nutrir o crescimento da vida democrática.


VI - CONCLUSÃO

A responsabilidade de todos católicos é, mais uma vez, um profundo motivo de Esperança, nos dias de hoje. Depositários da antropologia cristã, com uma visão integral do ser humano. O cidadão católico, dotado de uma profunda perspectiva espiritual, é capaz de olhar mais além da história, sem dela se afastar...e discernir dentro dos princípios da Verdade, da Justiça, da Liberdade e da Caridade. Esta capacidade de discernimento é, assim, uma escolha, perante as situações políticas concretas, das opções realisticamente possíveis, para dar cumprimento e não violar os princípios e os valores morais da vida social. Tal capacidade de decisão, inspirada à luz do Evangelho, poderá frutificar e permitir alcançar soluções eficazes para os problemas concretos da sociedade e dos cidadãos.
Os católicos, ao serem chamados a dar o seu contributo social, decisivo, para o Bem Comum, pede-se-lhes ainda, um empenho político comprometido com a sua formação cristã.
Muitos são, pois, os perigos que a democracia enfrenta. Mas por muito que o cepticismo nos apoquente, convirá recordar que tudo se reconduz a Cristo e à sua eterna mensagem de Amor e Esperança. Por isso, ouso terminar citando as palavras do Pescador : “Mestre, trabalhamos durante toda a noite e nada apanhámos, mas porque Tu o dizes, lançarei as redes…” (Lc 5,5)

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